Quando criança, aprendemos com os livros infantis, propagandas e filmes que pai é uma figura de proteção, cuidado e amizade. Um verdadeiro herói, companheiro para todas as horas. Mas, a realidade não acompanha a ficção em todos os lares e, em Mato Grosso do Sul, quase 10 mil crianças nasceram nos últimos três anos sem ter sequer o nome do genitor na certidão de nascimento.
Segundo a Arpen/Brasil (Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais), só em 2024 mais de mil crianças tiveram o registro de nascimento emitido sem o nome do genitor em Mato Grosso do Sul. Consegue imaginar este número a nível nacional?
Isso, claro, sem contar os casos em que o pai registra e nunca mais aparece, vê a criança uma vez ao mês só para garantir a foto de bom pai nas redes sociais, ou então, até mora na mesma casa, mas não consegue se recordar nem o dia do nascimento do filho ou se a prole tem alguma alergia alimentar, por exemplo.
A realidade é que a presença do pai, na divisa das tarefas, cuidados e afetos com a mãe é quase rara de se ver na sociedade. O nome na certidão de nascimento não garante a presença no dia a dia, afinal, pai ausente não é apenas aquele que não está presente fisicamente, mas também aquele que não está próximo emocionalmente, não demonstrando interesse por nada que seja relacionado ao filho.
Assim, para milhares de crianças, o Dia dos Pais, que deveria ser uma data de comemoração, apenas rememora uma figura nula e traz à tona dúvidas, negação, confusão e rejeição.
Ausência sentida na infância
Gilberto Flávio Macedo Filho, 47 anos, é o filho caçula de quatro irmãos. Parte de suas memórias da infância são baseadas nas histórias dolorosas que sua mãe nunca fez questão de esconder. Fugida de um relacionamento abusivo, onde sofria violência física e psicológica, ela deixou Campo Grande rumo a Nova Andradina, grávida de 8 meses de Gilberto, buscando abrigo na casa de seus pais.
Após o nascimento do filho mais novo, ela entrou em contato com o ex-marido, na época, por cartas. O nome do caçula já estava escolhido por ela, seria Marcelo. Bastava ao ex-cônjuge, apenas, registrar a certidão de nascimento.
Porém, ele achou por bem fazer suas próprias vontades, afinal, ele era o genitor. Daí veio o nome Gilberto. Uma homenagem do pai ausente para ele mesmo.
“Hoje, realmente, percebo que a ausência do meu pai na infância afetou bastante aquela fase da minha vida. A gente sentia falta. Minha mãe levava meus irmãos e eu para Campo Grande pra visitá-lo, mas nunca ficávamos com ele, sempre íamos para a casa da mãe dele, minha avó. Como pai, ele nunca demonstrou aproximação, nunca quis”, conta.
Na adolescência, revolta tomou o lugar da saudade
Gilberto lembra que, ainda na infância, sua mãe reuniu os filhos e explicou que não os traria mais para Campo Grande para ver o pai, porque ela tinha tentado que ele mantivesse contato, mas não via o menor esforço por parte do ex-marido. Isso, ela sabia, afetava muito o emocional das crianças.
Na adolescência de Gilberto, a relação com o pai não foi diferente. Isso, agravado a todas as questões que enfrentamos nesta fase da vida, gerava um sentimento de revolta pelo afastamento do genitor.
“A adolescência é a hora em que você precisa do pai. Minha mãe fez o papel de pai, ela defendia, ela ensinava, mas ainda assim não era igual, porque cada um exerce um papel diferente na vida do filho. Por mais que ela tenha tentado, um conselho de pai poderia ter mudado muita coisa”, pontua.
“Não tivemos aquele abraço de pai e filho”
Dezoito anos se passaram, Gilberto já estava formado, casado e era pai de uma menina. Nesta época, ele já não mantinha contato com o genitor, mas sabia que ele havia se casado e ido morar no Japão.
Um dia, enquanto estava de passagem por Campo Grande com o cunhado, Gilberto aproveitou para visitar a família paterna. Ele só não sabia que o pai havia voltado para o Brasil e que aquele seria o primeiro reencontro dos dois em quase duas décadas.
“Como fazia mais de 18 anos, eu nem o reconheci, achei que era um tio meu. Ele me tratou muito friamente, não tivemos aquele abraço de pai e filho, que era uma coisa que eu queria há muito tempo. Eu me senti muito triste com isso. Desde então, não tivemos mais contato”.
“Quero ser o pai que não tive”
Hoje, pai de duas meninas, uma de 25 e outra de 3 anos, Gilberto busca ser para elas a figura paterna que nunca teve, oferecendo o que considera mais importante: tempo de qualidade, amor, respeito, cumplicidade e acolhimento.
“Faço totalmente diferente do que vivi. Minha filha mais velha e eu sempre estamos conversando. Quando ela era criança, eu fazia pipa para soltarmos juntos, jogávamos bola. Agora, depois de grande, vamos caminhar, tomamos uma cervejinha juntos, ela assa carne pra gente… Fazemos tudo com a mãe dela e a minha caçula. Somos uma família mesmo. Não sou perfeito, tenho meus erros, mas estou tentando fazer o meu melhor e a cada dia aprendendo mais com elas”, afirma.
Para Gilberto, ser pai é algo divino e não consegue entender por que tantos homens se abstêm dessa responsabilidade e alegria que é criar um filho.
Agora, o Dia dos Pais é uma data ressignificada para ele. Se antes não havia o por que comemorar, hoje o motivo é duplo.
“Aprendi na vida com meus erros e converso com minhas filhas para que elas não errem tanto quanto o pai delas. Não consigo entender quem abre mão disso. Meu pai não precisava estar casado com a minha mãe, mas ele podia ter me ensinado alguma coisa. Hoje sou grato a Deus por ser pai de duas meninas lindas, a Eduarda e a Helena”.
O amor por quem cria
Laís Victória, 24 anos, também cresceu sem a presença do pai biológico e só o conheceu no ano passado. Ela lembra que durante a infância sua família materna não falava sobre ele e nem deixava claro o que havia acontecido. Apesar da curiosidade em saber quem era seu genitor – que ela só conhecia por nome -, Laís sentia dificuldade em tocar neste assunto, com medo de magoar a mãe.
Apesar disso, ela aponta que na primeira infância, a ausência do genitor pouco era sentida, já que tinha um padrasto que cumpria o papel perfeitamente. Era amoroso, carinhoso e presente!
Infelizmente, alguns anos depois, seu pai de criação travou uma luta contra o câncer, falecendo no dia em que Laís completava 10 anos.
“Meu aniversário se tornou uma data difícil, porque o pai que me criou faleceu no meu aniversário de 10 anos, então todo ano me lembro dele nesse dia. Eu digo que é nosso aniversário juntos: meu aqui e o dele no céu”, conta.
Inseguranças
A partir da perda do padrasto, Laís passou a lidar com diversas questões difíceis sobre sua identidade e pertencimento, passando a questionar muito mais a escolha do pai biológico em se manter distante.
“Na minha infância, quando ele [padrasto] era vivo, eu não sentia falta de um pai porque ele era meu pai. Então, pra mim, estava tudo certo. Quando eu o perdi, aí veio a parte que mais sofri sobre paternidade. Era muito triste! Dia dos pais, na escola, o dia do aniversário dele… A gente acabava sofrendo de novo. Graças a Deus eu tinha o meu avô”, explica.
Segundo Laís, a partir deste momento, ela passou a se interessar em conhecer o pai biológico que nunca a havia procurado, pensando que tudo em sua vida teria um novo sentido e todo aquele vazio que sentia enfim seria preenchido.
“Eu tinha muitas questões, então eu achava que conhecer ele seria a resolução das minhas questões. Só que não era. Nesse período, quando eu perdi o meu pai que me criou, Deus se apresentou como pai para mim. Então todas as lacunas que eu tinha no meu coração, questionamentos de quem eu era, se eu era amada, se eu era bonita, foram preenchidas por Ele”, conta.
Encontro com o pai
Quando Laís tinha 21 anos, enfim conseguiu informações sobre o pai biológico e, com a ajuda de uma amiga, fez o primeiro contato com ele por meio das redes sociais.
“Esse contato foi bem rápido. Ele estava aberto para conversar comigo, mas não mantivemos muito contato. Ele não explicou o motivo de nunca ter me procurado e eu também não cobrei isso dele. Outras pessoas me contaram coisas da época que me fizeram olhar com outros olhos pra ele, pra minha mãe e pra mim mesma”, pontua.
O encontro presencial só aconteceu no ano passado. Para ela, foi sofrido e estranho reviver tantos sentimentos complexos gerados pelos traumas vividos ao longo dos anos e finalmente ver de perto a pessoa que ela idealizou em sua cabeça por tantos anos.
“Na minha adolescência, achava que se eu conhecesse meu pai biológico, todas as questões que eu tinha comigo mesmo seriam resolvidas. Eu achava que ele era a resposta. E não era, né? E quando fui conhecer ele realmente, depois de tantos anos, eu já estava resolvida, sabe? Mas claro, eu sofri, sofri depois que conheci ele e foi estranho, né? Foi estranho conhecer, conversar”, explica.
Atualmente, a mãe de Laís é casada e para ela, o padrasto é um amigo, um presente que trouxe muita alegria para a vida das duas. Já com o pai biológico, a relação nunca evoluiu muito e entre eles o contato atualmente é mínimo.
Ausência que causa traumas para uma vida toda
Segundo Karoline Vieira Mincarone, psicóloga especialista em Psicologia da Maternidade, apesar de cada indivíduo reagir de forma particular sobre a ausência da figura paterna, quando se avaliam grupos de pessoas que não tiveram a presença do pai em suas vidas, é possível notar uma série de comportamentos disfuncionais que outros grupos com pais presentes não apresentam ou apresentam em menor escala.
“Na infância, por exemplo, a ausência do pai pode trazer prejuízos ao desenvolvimento infantil, considerando que a criança entre em contato com sentimentos de rejeição e descuido. Logo ela poderá apresentar choros excessivos, dificuldade de compreender regras, falta de concentração e atenção, medo de ficar sozinha, baixa autoconfiança para brincar com outras crianças, atraso na linguagem e outros comportamentos desafiadores”, explica.
Já a adolescência, a especialista explica que é um momento de transição, que traz pensamentos de abandono que impactam diretamente na autoestima do jovem.
“Ele passa a questionar os seus valores e o próprio senso de si, podendo apresentar insegurança para executar suas tarefas de rotina, principalmente na fase escolar e no desenvolvimento de suas habilidades sociais. As relações de amizade também podem sofrer prejuízos”, pontua.
Por fim, na fase adulta, o impacto pode estar mais ligado ao desempenho profissional e às relações amorosas. Isso porque, quando uma criança não recebe uma base afetiva segura, de amor e cuidado, ela estará sempre tomada por insegurança. Já as relações amorosas também poderão ser afetadas por meio das cobranças excessivas de atenção e afeto.
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