O autismo, ou transtorno do espectro autista (TEA), é classificado pela comunidade médica como um distúrbio do neurodesenvolvimento que acarreta déficit na comunicação social, como dificuldades de socialização, comunicação verbal e não verbal e também no comportamento, como interesse restrito, hiperfoco e movimentos repetitivos. Tendo em vista que a comunidade diagnosticada com essa condição lida diariamente com inúmeros percalços, integrantes ressaltam que as principais barreiras são enfrentadas já dentro das escolas.
Apesar do sonho de ‘educação para todos’, autistas de Campo Grande enfrentam dificuldades no processo de alfabetização devido à estrutura de ensino tradicional que ainda rege o país. Assim, falta um olhar humanitário para trabalhar com a individualidade.
Dessa forma, quando se fala em inclusão de crianças e adolescentes com autismo na escola de ensino regular, pais e responsáveis se perguntam sobre o preparo dos professores para receber esses alunos. Portanto, fica o questionamento: qual o papel do professor na inclusão escolar de crianças com autismo na rede regular de ensino?
Materiais precisam ser adaptados
Luiz Fagner Amarilha de Barros, 42 anos, é professor e pai do Arthur, menino de 9 anos diagnosticado com autismo leve. No 4º ano da escola, o garoto integra o ensino privado e tem muita afinidade com a Língua Inglesa. Essa, inclusive, é a sua matéria preferida.
Porém, Arthur teve muita dificuldade quando entrou na fase de alfabetização. Segundo o pai, necessitou de um suporte muito grande da família e equipe multidisciplinar para orientar a escola nesse processo. Mas, até hoje, as dificuldades são constantes e vão desde a falta do olhar individualizado até materiais não adaptados para autistas.
“A grande dificuldade está na forma como a escola é orientada a fazer esse ensino. O meu filho tem um estilo diferente do tradicional e exige muito do profissional que está ali, por isso muitas crianças não atingem a alfabetização. É necessário entender os alunos e quais portas podem ser abertas para eles, mas muitos profissionais ainda não estão preparados para isso. Leva tempo”, afirma Luiz.
Arthur, por exemplo, tem uma rotina diferente dos demais colegas. Além de frequentar as aulas, precisa de fonoaudióloga, de neurologista, passa por avaliações frequentes e vive uma agenda sistemática no núcleo familiar. Quando chega da escola para fazer a tarefa, tem dificuldade em entender frases muito longas e se desconcentra quando o volume de atividades é muito grande. Por isso, o pai ressalta que os exercícios deveriam ser específicos para ele.
“O grande desafio é fazer material específico para essas crianças e colocar exercícios para a realidade do Arthur. Os pais, por vezes, precisam fazer todo o suporte, o que é muito desgastante para pais e criança, porque ela não aceita fazer atividade diferente. A adaptação precisa ainda melhorar bastante tanto na rede pública quanto na privada”.
Luiz, além de ser pai do Arthur, também dá aula para crianças autistas na rede pública. Ele fala que mudanças simples fazem grandes diferenças na vida dessas famílias. Ele cita: maior uso de recursos visuais na sala de aula do que só ‘copiar do quadro’, fazer material separado para a pessoa com foco em imagens e exercícios mais concisos, bem como perguntas mais específicas.
“Colocar bastante imagem, aumentar a letra, colocar material colorido e outras séries de situações são algumas soluções, mas que as escolas acabam não fornecendo e reforçando a exclusão. Os autistas querem fazer, querem aprender, mas precisa ser da forma que atinja suas necessidades”.
Tendo em vista que ao menos 2.706 alunos com TEA estão matriculados na rede pública de Mato Grosso do Sul, se torna cada vez mais necessária a atenção a esses públicos específicos. Afinal, a alfabetização é o primeiro passo da comunicação com o meio externo e pode influenciar no grau de suporte que essa criança pode vir a necessitar no futuro.
Ensino para autistas na Semed
De acordo com o Censo Escolar, são 4.072 alunos públicos da educação especial matriculados na Reme (Rede Municipal de Ensino) em Campo Grande, sendo 1.740 diagnosticados com autismo.
Conforme a Semed (Secretaria Municipal de Ensino), a escola oferece recursos multifuncionais, assistente de educação inclusiva, assistente de educação infantil, transporte acessível e recursos de tecnologia assistida.
“O conteúdo, as atividades e as avaliações são adaptadas de acordo com as necessidades e conhecimentos dos alunos. O material é adaptado pelo professor regente, apoios e professor de salas de recursos multifuncionais”, diz a secretaria.
Além disso, há alunos com autismo matriculados em todas as escolas municipais de Ensino Fundamental e Emeis (Escola de Educação Infantil) de Campo Grande.
“A SEMED investe em formação continuada de diretores, coordenadores e professores para capacitá-los nos serviços de atendimento para os alunos comuns e especiais”, informa por meio de nota.
Procurada, a SED (Secretaria de Estado de Educação) também especificou como funciona o seu sistema de ensino para alunos autistas.
Ensino para autistas na SED
A Rede Estadual de Ensino tem 966 estudantes com Transtorno do Espectro Autista matriculados nas escolas da Rede Estadual de Ensino, sendo Campo Grande e Dourados as cidades com maior número de autistas na rede devido ao número populacional das cidades. Ao Midiamax, a SED afirma que conta, em sua estrutura, com o Ceame/TEA (Centro de Apoio Multidisciplinar Educacional ao Estudante com Transtorno do Espectro Autista) vinculado à Copesp (Coordenadoria de Políticas para a Educação Especial) da Superintendência de Políticas Educacionais.
“O Ceame/TEA tem por princípios apoiar e subsidiar a formação do estudante com Transtorno do Espectro Autista (TEA) priorizando o processo de ensino de aprendizagem com qualidade e acompanhar os estudantes e a equipe pedagógica das escolas estaduais de Mato Grosso do Sul, assessorando e desenvolvendo pesquisas e materiais didáticos com essa finalidade”.
A SED ainda alega que os estudantes que não conseguem frequentar o Ceame/TEA recebem o mesmo atendimento nas Salas de Recursos Multifuncionais na própria escola matriculada ou mais próxima, no contraturno.
“Nesse atendimento, é realizada a complementação das habilidades escolares e curriculares necessárias ao bom desempenho e desenvolvimento pedagógico do estudante com TEA”.
Vale ressaltar que a criança recebe o serviço do professor de apoio especializado em educação especial quando a escola julga necessário. Nesses casos, o professor atua na sala de aula com outros professores.
Questionada sobre os materiais de ensino, a SED alega analisar o grau de complexidade de cada aluno com TEA e o professor faz a adequação das atividades desde a intensidade até avaliações. “Cada estudante com TEA tem o Plano Educacional Individualizado (PEI) e a partir desse instrumento, as atividades, avaliações e outras necessidades educativas são definidas e providenciadas pelas equipes escolares com o apoio e assessoramento da equipe da educação especial”, diz.
Partindo dessas informações, é possível ver que existem políticas públicas para o ensino especial na rede pública. No entanto, quem está na ponta afirma que a inclusão está além do papel.
Inclusão está na atitude, não só no papel
Cidnei Amaral é professor da rede pública municipal especializado no ensino de crianças autistas. Ele atua na Sala de Recursos Multifuncionais, que serve para complementação das atividades escolares para desenvolvimento pedagógico dos estudantes com TEA. O reforço ocorre no contraturno das aulas. O especialista explica que essas salas estão dispostas em algumas unidades escolares e recebem demanda de escolas onde não há o local especializado.
“Eu busco desenvolver um trabalho para que ela [criança autista] dê uma resposta na sala regular, porque a criança precisa ter atenção, concentração para desenvolver habilidades. Tudo isso de forma lúdica, com recursos audiovisuais que chame a atenção e que possa ser possível chegar na ponta, na sala regular, para que a criança consiga desenvolver habilidades sociais e educacionais. É uma via de mão dupla e precisa ter participação da escola, família, dos professores e profissionais de apoio. Assim o aluno consegue ter maior desenvolvimento”.
Para o especialista, que trabalha há pelo menos 10 anos com a educação especial, a sociedade ainda está na fase de entender o que significa inclusão. Afinal, o próprio formato tradicional da escola busca a padronização. Dessa forma, a verdadeira inclusão está além do papel. Assim, o professor responsável pela sala de aula precisa ter olhar de empatia com o aluno autista que precisa dele.
“Não basta apenas ter políticas públicas, como temos muitas. Temos pessoas formadas em inclusão, mas a inclusão é a forma como lidar com o outro, algo que é muito individual da empatia, do vínculo que o professor tenta criar com o aluno, do contato, da compreensão. A gente não pode focar na deficiência, mas sim no indivíduo. A escola precisa fazer um resgate de que a gente não trabalha numa fábrica, a nossa ferramenta de trabalho é o ser humano. A educação precisa focar nas necessidades do indivíduo, na formação de professores, na contratação de profissionais realmente capacitados”, afirma Cidnei.
Dessa forma, a sociedade precisa encarar a inclusão como o direito do outro pertencer a todos os espaços, além de ser uma questão de atitude e não só de políticas públicas. Por isso, a inclusão só ocorre quando o outro tem o direito de ser quem ele é.
A pior barreira é a atitudinal
Já ouviu esse termo? As barreiras atitudinais são aquelas que impedem ou prejudicam a participação social da pessoa com deficiência ou transtorno nos espaços com as mesmas condições e oportunidades dos demais. Pareceu familiar? Isso porque está ligado a questões envolvendo preconceitos e pensamentos capacitistas, conceitos que influenciam direta e indiretamente no trato dos alunos na sala de aula. Assim, pais de autistas lutam para colocar profissionais verdadeiramente capacitados e com visão de mundo para ensinar os seus filhos.
Essa é a causa de Carolina Spíndola, mãe de autista e ativista. Ela tem três filhos, sendo dois autistas e adolescentes, ou seja, ela viveu de perto todo o processo de alfabetização e quais os resultados observados depois de anos.
O Thiago é autista nível 3 de suporte. Ele terminou o ensino fundamental e não vai conseguir ir para o médio. Ele vai completar um ano como integrante do Teammorar Moradia Assistida, uma residência de apoio terapêutico 24h de permanência para pessoas autistas. Segundo Carolina, ele teve mais resultados na alfabetização nos últimos quatro meses do que nos 10 anos de ensino municipal.
Já o Matheus está no 3º ano do ensino médio do ensino estadual. Ele tem nível 1 de suporte. Para Carol, a educação regular ainda não está preparada para alfabetizar autistas e crianças com deficiência. Existem alguns recursos necessários, mas o governo ainda não se habituou à realidade. Para ela, a principal crítica está na escolha dos profissionais de apoio ser, por lei, apenas de responsabilidade da Educação.
“O que acontece é que oferece o profissional de apoio, o mediador, quando necessário. E quando necessário, o profissional não conhece a realidade daquele aluno. Quem escolhe o mediador é a Educação, mas na verdade ele deveria ser escolhido por colegiado a partir de pessoas com conhecimento do autismo, envolvidas no dia a dia do autista, que criam vínculos”, alega.
Dessa forma, o professor precisa entender a função dele como educador social e que o aluno é, acima de tudo, um ser humano que precisa de olhar individualizado. Além disso, pontua que as salas de recursos multifuncionais deveriam funcionar durante as aulas, não no contraturno, porque muitas famílias não têm condições de levar as crianças até outras unidades educacionais, por exemplo.
“Estou há 10 anos lutando por uma situação no ensino público que continua a não respeitar a pessoa com deficiência. Não falamos de acessibilidade arquitetônica, mas de maneira geral. Não existe acessibilidade para autistas sem alfabetização. A acessibilidade para autista é reconhecer modelos diferenciados de comunicação e que eles podem e devem ser utilizados dentro da sala”.
A importância do diagnóstico
Você já ouviu a frase discriminatória “não existia autistas antigamente” alguma vez na sua vida? Pensando em uma realidade de 30 anos atrás, quando pouco se falava sobre o autismo devido a inúmeros fatores — exclusão social, baixo investimento de pesquisas e falta de profissionais — especialistas indicam que grande parte dos adultos hoje com características do TEA nunca foram sequer diagnosticados.
A falta de diagnóstico durante o período de desenvolvimento pode acarretar em várias consequências, como intensificação do quadro, inadequação social e potencialização das dificuldades.
Quando adultos, as principais queixas estão relacionadas a instabilidades profissionais, dificuldades nos relacionamentos amorosos, preferência por atividades rotineiras e individuais, dificuldade em permanecer em locais ruidosos, não compreensão de regras e afins.
“Mesmo após adultos, quando o diagnóstico não acontece, a possibilidade de quadros depressivos e ansiosos serem instalados é intensa, causando sérios prejuízos em sua vida de maneira global, inclusive podendo levar ao abuso de substâncias psicoativas”, afirma a neuropsicóloga Paola Gianotto.
Nesse cenário, a participação familiar no diagnóstico e tratamento é fundamental para garantir uma vida plena ao autista, inclusive no processo educacional.
“Esses casos são difíceis porque a pessoa já passou por todo um processo de desenvolvimento e não teve um olhar da especificidade para que fosse melhor. Existem muitos casos de diagnósticos tardios porque muitas famílias têm dificuldade em aceitar a condição ou de manter o tratamento. Essa criança autista, sem diagnóstico, muitas vezes é tida como uma criança grosseira e birrenta. Foi rotulada de coisas que não era. Se houvesse o diagnóstico no início, essa criança não passaria por essa situação”, complementa Cidnei.
Diagnóstico e tratamento de autistas
O Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais aponta a possibilidade de ter diagnóstico a partir dos 12 meses por meio de protocolos específicos.
Assim, segundo a especialista, um diagnóstico adequado envolve a realização de uma avaliação neuropsicológica seguida, minimamente, das avaliações com fonoaudiólogos e terapeutas ocupacionais, e concluída pelo psiquiatra ou neurologista.
Quanto ao tratamento, Paola afirma que varia de acordo com o grau e especificidade da pessoa.
“Quando necessário, a combinação entre os atendimentos com profissionais especialistas em TEA nas áreas da psicologia, fonoaudiologia, terapia ocupacional, junto a orientações e intervenções escolares em parceria com os educadores da educação especial, e o acompanhamento médico, é essencial”, conclui a neuropsicóloga.
Fonte: Midiamax
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